Recomeçar

– Você tem certeza disso? – olhando para seu amigo

– Claro, cara. Por que eu estaria errado?

Carlos suspirou. Ele sempre estava errado, na verdade. Mas a amizade com o Rafa sempre seguiu a regra de não contrariar a merda que o outro fizesse. No máximo, uma advertência antes e um “eu avisei” depois. Nada mais.

– De todas as coisas nesse mundo, você precisava mesmo fazer isso? – disse Carlos.

– Sim.

– Você pode morrer.

– Eu sei. Não que isso faça muita diferença agora, mas eu sei. – deu um meio sorriso amarelo

– …

– Tá com medo, cara?

– Muito – admitiu

– É por isso que chamam isso de “salto de fé”. Você não vem?

Olhou para baixo, calculando a distância entre seu corpo e o chão. Grande demais. Se agarrou um pouco mais forte nos apoios de concreto, com medo da vertigem pregar uma peça e puxar seu pé.

– Nem ferrando.

– Um dia vai acreditar, cara. – Rafa limitou-se a rir da situação – Ô, rapaz de pouca fé.

E pulou. Ele observou o corpo do seu amigo caindo em direção ao chão, cada vez mais rápido e decisivo. Segundos intermináveis de agonia, até que uma corda de segurança o puxou para cima. Carlos sentiu um arrepio subindo pela espinha. Se fosse há dez anos atrás, ele pularia junto sem hesitar. Mas aos 29 anos, o risco tem que dar lugar para a prudência.

Além disso, Bungee Jump nunca esteve em suas prioridades.

***

Acordou.

Olhou para o relógio na cabeceira da cama. “Duas da manhã” Carlos pensou, remexendo-se nas cobertas. Virou para o lado e tentou adormecer mais algumas vezes. Sem sucesso. Tinha alguma coisa presa em sua garganta.

Desistiu do sono e foi até a cozinha beber um copo d’água. Seria uma casa bem confortável para qualquer um, mas Carlos sempre achou muito grande e solitária. Um grande bloco de marfim branco, carregado em suas costas. “Se ao menos ela estivesse aqui…” ocorreu, antes de afastar o pensamento com um gole. Não era bom mexer em caixões enterrados a essa hora da noite. Até o silêncio da madrugada ser quebrado por um toque de celular. Carlos voltou para o quarto e pegou o aparelho da cabeceira.

– Merda… quem será o f…- calou-se. Era Júlia.

De todas as pessoas do mundo, era Júlia. Anos e anos sem muito mais contato que um “oi” em encontros de família, e ela estava ligando no meio da madrugada. O coração de Carlos saltou para a garganta antes de atender.

– Oi Jú.

– Carlos, você falou com o Rafa?

“ Sempre o Rafa”.

– Não, umas semanas que não nos falamos, por quê?

– Ele sumiu. – disse Júlia – Ele sumiu Carlos. A vizinha dele me ligou, dizendo que ele não saia do apartamento há dias. Dai, o sindico abriu a porta e ele nem tava mais lá.

– Tem certeza?

– Sim. – Soluçou.

Carlos engoliu seco. Apesar das ultimas brigas, o Rafa sempre esteve lá. Desde crianças, na escola, na faculdade… Mesmo com 40 anos nas costas e a Júlia no meio, estiveram juntos para tudo. E, agora, ele sumiu.

– Já ligaram pra todo mundo?

– S-sim. Ninguém sabe.

– Vou tentar mesmo assim.

Encerrou a ligação. “Júlia estava chorando por ele” pensou por um segundo. Afastou isso, porque não era importante agora. Ligou para todos. Nada no trabalho, nada com outros conhecidos, apartamento realmente vazio. Nada de Rafa há pelo menos duas semanas. Se estivesse em seriado policial, seria a hora que Carlos procuraria digitais, ligações do celular e rastros do cartões de crédito. Mas um contador não tem essas habilidades ocultas. Até que se lembrou de uma pista.

– A lista!

Pegou a chave do carro e saiu de casa, atrás de uma memória há muito esquecida.

***

Carlos tinha 10 anos. Um menino típico de cidade grande que visitou o sítio do avô e foi afastado de toda e qualquer tecnologia. Até de lâmpadas. Sua cara estava suja, seus pés descalços e contava até 100 para procurar seus amigos no esconde-esconde. De dois em dois, claro.

Terminou e olhou ao seu redor. Não levou tanto tempo assim pra encontrar os seus primos. Um era muito gordo pra se esconder atrás de qualquer coisa e o outro muito burro para notar que metade do seu corpo aparecia atrás da árvore. Faltavam duas pessoas só.

Começou a procurar dentro da casa vazia, onde seu avô normalmente guardava tranqueiras. “Esse seria um bom lugar pra ele se esconder” pensou. O Rafa sempre fora esperto pra esconde-esconde e levá-lo na viagem tornava tudo mais divertido para Carlos. E era um alívio para o Rafa. Ele precisava se divertir, depois de perder o pai daquele jeito. Gastou um tempo em dois cômodos grandes, um quarto com poeira e uma sala meio cheia de caixas. Ai, olhou no armário e encontrou.

Sentiu seu estômago dar uma volta.

O Rafa estava com a Júlia, abraçados no mesmo canto. Poderiam ter gritado de susto, se não tivessem se beijando há um tempo, alheios a tudo. Carlos ficou entre a vontade de dar um chute nos dois e dar meia volta.

Optou pela meia-volta até a casa grande, desistindo de brincar.

Júlia era sua prima também. Uma garota loira, teimosa e brigona. Carlos sempre sentiu um arrepio leve quando ela chegava perto. E agora, era um ódio imenso dela e do Rafa. Mais dele, no caso.

A noite, Rafa procurou o amigo.

– Onde você esteve o dia todo, cara?

– Por ai.

– Sei… por ai.

– É.

Silêncio.

– Eu vi vocês.

– O quê?

– Eu vi vocês! – gritou Carlos – Juntos, no armário!

Segurou o choro, para não demonstrar fraqueza. Rafa olhou fundo para o amigo, antes de enfiar outra espada.

– Eu gosto dela, cara.

– Eu também. Mas ela quer você. Sempre é assim.

– Não é verdade… – murmurou Rafa, embora fosse. – Me desculpa?

Carlos empurrou o coração na garganta pro lugar dele.

– Sim, eu acho. – abraçando-se.

Doeu bastante dizer aquilo. Era uma decisão difícil, mas a amizade pesava mais. Talvez existissem outras Júlias no mundo, com seus cabelos loiros e sua boca rosada. Ou mesmo uma ruiva de olhos verdes mandona.

Agora Rafa só tinha um.

– Eu achei a lista, cara. – disse Rafa

– Que lista?

– A do meu pai.

Era um pedaço de papel amassado com a letra do pai do Rafa, muito rabiscada para ler com clareza. Mas estavam lá. Os últimos desejos do Sr. Sousa, nunca realizados.

– Meu pai me deu isso, antes de… bom, antes.

Carlos tentou pegar a lista, mas o amigo afastou a mão.

– Rafa, você não vai morrer – Olhar sério.

– Meu pai morreu

– Mas você não vai. – Carlos teimou. Afinal, era uma criança. Rafael limitou-se a suspirar, com ar de “não adianta explicar”.

– Eu vou cumprir os itens, cara. – Rafa mostrou a língua – Por ele.

– Só não se apaixone pela Júlia. – Carlos, sério – Promete?

– Prometo. – dedos cruzados.

“ Rafa só tem um”

***

Há muitos verões que Carlos não visitava aquela casa. A propriedade era bem afastada do resto da cidade. Um sítio de interior, que brincava quando criança. Quando cresceu, ficar afastado do mundo nunca lhe pareceu uma boa ideia.

Trocou as noites de conversa pelas festinhas no centro da cidade, no clube esportivo e na casa de amigos. Rafa sempre o acompanhou, mas Carlos sabia o quanto ele sentiu falta daqueles tempos. Passou pela porta velha, corroída por insetos e tempo. Todo o lugar estava mal cuidado desde que o velho morreu, há alguns anos atrás.

Por trás de cada passo no assoalho, nostalgia. Os dias passavam em flash por sua cabeça, como gritos de algo há muito esquecido. Seus pés pesavam à medida que se deslocava para seu destino. Foi até o último cômodo do quarto, onde viu um homem negro sentado, com uma arma na mão.

– Rafael?

– Oi cara. Tava esperando você.

Rafa deu um sorriso lupino, por detrás de uma barba mal feita. Sua aparência envelhecera com a casa. Estava magro, com o cabelo desalinhado e as roupas sujas. Mas ainda com os mesmos olhos negros intensos que Carlos aprendeu a conviver durante todo esse tempo. Ele brincava com o revolver, girando-o lentamente na sua mão.

– O que aconteceu, Rafa?

– O de sempre. – respondeu o amigo – Lembra dessa casa, cara?

– Lembro, Rafa… Agora, abaixa essa arma pra gente conversar.

– Lembra do que o seu avô dizia, quando acabávamos brigando com outros garotos?

-…

– Ele dizia “os fortes devem proteger os fracos”

– O que aconteceu com você, Rafa?

– Os fortes devem proteger os fracos – murmurava para a escuridão

– Ainda tem chance do tratamento dar certo. Não é o fim.

– Os fortes devem proteger os fracos

– Rafa… Larga essa arm..

– Os fortes devem proteger os fracos.

– Eu sei disso! – foi um berro

– Então, por que você não me protege, Carlos?

O homem foi ao chão, abraçou os próprios joelhos e soluçou como uma criança. Carlos observou entorpecido. Uma gota de suor frio escorria lentamente para sua nuca.

– Por que você não me protege?

Passaram alguns minutos em silêncio até que ouviu a arma emitir um estalo. Rafa olhou para seu amigo, erguendo a arma em sua direção.

– O que vai fazer com isso?

– Pra falar a verdade sempre tive inveja de você, cara. Tinha uma família, uma prima linda, era inteligente, tinha sorte. Eu sempre fui um fudido na sua sombra. Chego aos 40 anos com um pé na força e nada pra me agarrar. A única coisa que eu tinha era a lista do meu pai, e nem isso eu vou terminar.

– O que tem nessa lista?

– Não importa agora. Abandonei faz algum tempo isso.

Carlos sentiu seus músculos enrijecerem. Sua cabeça girava com a perspectiva de morrer na casa do seu avô, pelas mãos de seu melhor amigo. Tentou gritar com Rafael, socá-lo, abraçá-lo e dizer o quanto ele era importante. Mas não conseguia dizer nada.

– Engraçado como as coisas se repetem – murmurava – Já ouvimos essa história milhares e milhares de vezes. Dois irmãos, dois amigos, duas personalidades diferentes. Um bom, outro mau. Se amam, se odeiam. Brigam. Até que um deles enlouquece. E mata.

– Não precisa acabar assim, Rafa.

– Precisa. Porque só acaba uma vez.

Fôlego.

– Te vejo em outra vida, cara – disse Rafael

Carlos fechou os olhos.

***

– Era seu parente?

– Amigo.

– Sinto muito pela sua perda – disse o responsável, com o tom de quem repete essa frase umas 20 vezes por dia – Ninguém veio vê-lo, além de você. Ele tinha alguma família?

– Não.

– Tudo bem então, senhor. – disse o velho, deixando o salão.

Era uma tarde chuvosa de terça-feira. Muitas cadeiras vazias ao redor de um caixão de madeira. O tempo caminhava em passos lentos, a medida que o firmamento derramava águas sob o concreto. Só dois homens no local.

Um deles olhou para o outro. Apesar de tudo, o amava. Eles caminharam juntos o tempo todo. Foram amigos de infância, rivais de romance, colegas de faculdade e agora dividiam a morte, embora um ainda respirasse. O homem sentia-se vazio por dentro. Uma sensação estranha, de que faltava algo ou alguém em algum lugar.

E faltava mesmo.

Alguns passos ecoaram no salão branco. O homem não olhou para a direção do som, ainda encarando o falecido. Depois de alguns segundos, sentiu uma presença e um toque familiar.

– Faz muito tempo que você chegou? – sua voz era doce como a primavera.

– É…

Era loira, com cabelos ondulados até o ombro. Usava um vestido negro que mostrava sua falta de curvas naturais. Seus olhos estavam inchados, como os de quem chorava por horas a fio. Uma garota comum para qualquer um que a visse. Importante para os dois.

– Não queria que fosse assim…

Júlia beijou o falecido, deixando outra lágrima escapar. Despediu-se do amigo em soluços breves, antes de conversar com o homem.

– O que aconteceu naquela casa, primo?

– Ele se matou… Ele apontou a arma pra mim e eu fechei os olhos. Ouvi um tiro e, quando vi, ele estourou a própria cabeça.

Carlos soluçou.

– Eu congelei. Fiquei com medo dele me matar. Não consegui fazer nada. Nada!

Júlia abraçou seu primo. Ele se agarrou em seus braços, o perfume dela acalmando-o. Desde crianças, Júlia era o ponto de equilíbrio exato da sua vida. Mesmo quando se afastaram, ela foi sua voz da consciência, sua melhor amiga e seu maior caso de amor não correspondido.

– Eu passei no apartamento dele, pra pegar as coisas e achei isso – Júlia entregou um pedaço de papel amassado.

Apesar de não vê-lo há muitos anos, Carlos reconheceu de imediato. A letra do Sr. Sousa era inconfundível. Tinha cinco palavras escritas, embora somente quatro fossem legíveis. Ele pegou a lista que motivara a vida e morte de seu amigo.

– Você sabe o que isso significa, Carlos?

“Sim”, mas disse:

– Não.

– Achei que você saberia – Júlia suspirou.

-…

– Quanto tempo ele ainda tinha, primo?

– Os médicos deram um ano. Talvez, menos.

– Igual o pai – refletiu Júlia – Estranho como essas coisas acont..

Carlos não prestou atenção no discurso da prima. As palavras da lista percorriam sua mente. Eram sutis, imprecisas e nada parecidas com um “último desejo”. Ele leu “amar” “arriscar” “fugir” e “dar adeus”. Ele não se lembrava do rosto do Sr. Sousa. Quando pensou, notou que não lembrava do rosto de seu avô também.

– Não foi sua culpa, Carlos – disse Júlia.

– …

– Eu entendo ele melhor que muitas pessoas. Ele tinha muitos problemas, sabe?

– Não…

– Ele teve muitas coisas na vida dele que levaram a isso. Talvez tenha sido melhor e….

– Não fale mal dele!

– Eu amo muito o Rafa, Carlos! – gritou Júlia – Eu amo ele desde sempre! Mas não dava, cara. Tentamos um tempo e não dava mais. Ele ia morrer de qualquer jeito! Ele apontou uma arma pra você, pelo amor de Deus!

A chuva começava a dar lugar para um sol poente. A grama baixa agradecia o banho, balançando-se levemente contar o vento em uma dança contida. Carlos sentiu algo saindo do seu peito, depois de muitos anos corroendo.

– Eu te amo, Júlia.

– Eu também amo você, Carlos. Mas é de outro jeito. – ela tocou o rosto dele suavemente – Não quero vir no seu funeral também, primo.

E o que eu faço?

– Viva. Por ele e por si mesmo.

Carlos respirou fundo. As palavras da lista ainda ecoavam na sua cabeça, até que alguma coisa mais forte interrompeu essa corrente. Uma frase antiga, que escapou de alguma profundeza esquecida para sua mente.

“Rafa só tem um”

Júlia deu um último abraço no seu primo, com um breve “fique bem”. Carlos acompanhou sua trajetória para fora da sala pela grama úmida, até um carro azul estacionado por perto. Um homem alto, de barba cheia a esperava encostado na porta. Ela beijou o homem, antes de entrar e partir outra vez.

Ele olhou de novo para Rafael. Sua expressão era serena como não via há anos. Muito mais o garotinho que brincava de esconde-esconde do que o homem que o ameaçava com armas. No fim, sentiu saudades daquele tempo que nunca parou para deixar viver mais um pouco o momento.

Até que entendeu.

Pegou a lista do bolso e releu a última palavra. A letra do Sr. Souza era realmente horrível, e somente alguém que já estivesse com essa palavra na cabeça conseguiria compreender. Carlos entendeu tudo e sorriu par o amigo. Curvou-se e murmurou:

– Te vejo em outra vida, cara.

E saiu para um novo dia de sol.

***

Ele olhava o abismo a sua frente. Uma queda e tanto. Como antes, sentiu a vertigem puxando seu estomago pra baixo.

-Meio alto não? Tem certeza disso?

Carlos se virou e viu uma mulher. Morena, de cabelos negros e um sorriso lindo. Era bem mais baixa que ele, trajando a mesma roupa de segurança obrigatória para quem pula de bungee jump.

– É por isso que chamam de “salto de fé” – respondeu – Qual seu nome?

– Tamiris.

Cumprimentaram-se brevemente.

– Tá com medo? – perguntou Tamiris

– Não mais.

– Me procura quando chegar lá embaixo, pra tomarmos alguma coisa fora daqui – sorriu Tamiris – Te vejo em outra vida.

A garota pulou sem hesitar. Carlos observou o trajeto do seu corpo, enquanto lembrava da mesma cena há alguns anos atrás. Lembrou da última palavra da lista e sorriu para o Rafa em algum ponto além. Respirou fundo.

“ A palavra é recomeçar” pensou Carlos, pulando para uma nova vida.