Para onde você vai?

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– Para onde você vai?
Foi a pergunta do meu pai, quando eu tinha cinco anos. Naquele tempo, era uma pergunta simples de pai para filho.
– Vou brincar lá fora.
E sai pela porta com minha bicicleta nova, o melhor presente que ganhei no natal de 96.
Ainda me lembro da primeira vez que cai com a bicicleta. Era 26 de dezembro de 1997, só um mês depois de tirar as rodinhas de iniciante. Não me machuquei, mas não conseguia parar de chorar. Minha mãe saiu de casa e me deu um abraço.
Era compreensível. Fazia só um dia que meu pai tinha morrido.

***

– Para onde você vai?
Foi a pergunta de um amigo meu, aos 14 anos.
– Vou com você.
Não era mais uma pergunta tão simples, mas a resposta continuava fácil para um adolescente impulsivo. Ele tinha um encontro com uma garota da sala e precisava de alguém pra ficar com a amiga. Bonita, mas não era a garota que eu queria.
Fui mais por questão de amizade.
E continuei abraçado com ela por amizade. E acariciei os cabelos dela, as mãos, o rosto, as coxas e os seios com a maior consideração fraternal do mundo. Só quando nos beijamos me toquei que eu realmente gostava dela.
Mas também gostava da loirinha de olhos castanhos, do período da tarde. Inteligente, divertida e melhor do que eu lutando judô. Nos beijamos depois do treino, na sala de ginástica que sempre tava vazia.
Virei malabarista.
Mas, ao invés de pratos, equilibrava tempo, preocupações, prazeres, emoções e dois amores em uma pessoa só. Depois, descobri que teria sido melhor ficar nos pratos. Os dois quebram, mas não se joga pessoas fora.

***

– Para onde você vai?
Foi a pergunta de um antigo amigo no ponto de ônibus.
Não era uma pergunta simples.
Eramos amigos desde crianças. Rimos, choramos, nos ajudamos, nos protegemos e disputamos garotas durante toda nossa vida. Juramos amizade eterna em um bar, traímos a promessa. Nos magoamos. Nos afastamos. Nos víamos novamente e voltávamos a ser velhos amigos.
Exceto que nada é como antes.
– Pra casa – respondi.
E o emprego? E a faculdade? E a namorada? E sua mãe? Cansado, trabalhando muito. Ano de TC, cê sabe. Ainda não namoro, a última pessoa não deu certo. Passou mal no natal mas já está melhor. Mesmo? Melhoras pra ela.
E fim.
O que fazer quando uma grande amizade vira uma conversa casual de ônibus?

***

– Para onde você vai?
Foi minha pergunta no dia do meu aniversário.
– Não sei.
E não existe pergunta mais difícil do que essa.
Talvez tudo não passe de uma nota de rodapé no livro do Destino. Talvez sonhos sejam coisas de crianças que não sabem andar de bicicleta, ao invés daquelas que enterram o próprio pai. Mas é fácil perceber que a vida nunca foi um caminho certo.
É um oceano de dúvidas, paixões, dores e repletos de você mesmo. Estamos a deriva, até que escolhemos nadar. Então mergulhamos, procuramos uma direção, nos afogamos. Às vezes as ondas nos carregam para o fundo.
Mas, às vezes, chegamos numa praia. E continuamos.

***

– Para onde você vai?
Foi a pergunta dela.
– Para onde você quiser – disse.
Porque eu te amo e você faz o caminho valer a pena, não disse.

***

– Para onde você foi?
Foi a pergunta da Morte.
– Pra falar a verdade, nunca saí de mim mesmo.
– E valeu a pena?
– Sim – depois de um tempo. – Gostei da viagem.
E, finalmente, paramos de caminhar.

Velha Pátria

"(...) estou velho e vou morrer. Não espere muito mais de mim"

Todos acordaram com a gritaria. Tentei ir até a porta, mas minha mãe me afastou com um “volta pra sua cama, filho”.

Claro que não voltei.

Dois minutos depois, a gritaria ficou mais alta. Eu espiava pela fresta de luz que invadia o quarto escuro. Meu tio, minha tia e minha mãe o seguravam pelos braços. Ele xingava, gritava, chorava, batia e tentava afastar todo mundo com toda sua força. Sem resultados.  Minha mãe percebeu o problema. Ela caminhou para a esquerda enquanto meus tios carregavam ele pro banheiro, já meio rendido.

Não tinha mais ninguém na sala. Nenhum barulho, além do chuveiro ligado e os insetos. Aguardei um bom tempo na mesma posição, sem saber o que fazer. De repente, passos. Meu tio abriu a porta e olhou nos meus olhos.

– Vem comigo. Vou te fazer um nescau.

Saímos pela porta principal até sua casa, nos fundos. No caminho, tentei ver o que acontecia no banheiro, mas a porta estava fechada. A “casa” era mais pra um puxadinho no terreno. Parede de gesso, porta de missangas, jarros decorativos de pimenta por todos os lados e um pássaro preto dormindo na gaiola, resquício da pousada de Santos.

Meu tio era uma pessoa interessante de conversar. Foi professor de história. No momento, alternava entre ser desempregado e ex-alcóolatra, que frequenta a igreja espírita mais próxima. Minha família o chamava de “um caso perdido”. Eu não me importava muito com isso. Nunca fui de jogar fora um brinquedo quebrado que eu amasse.

– Tio, o que aconteceu?

– Bom – me serviu o copo de achocolatado – Antes preciso perguntar como cê tá, garoto.

– Eu não sei – disse entre um gole e outro – Não muito bem, eu acho.

– Por quê?

Silêncio.

– Pelo que aconteceu com ele?

– Promete que não conta pra mamãe?

– Tudo bem.

Respirei fundo.

– Eu não gosto dele, tio. E acho que ele não gosta de mim também.

Engasguei. Por mais que tentasse, não deu pra segurar e algumas lágrimas caíram no copo com leite. Meu tio o tirou da minha mão e esperou eu me acalmar. Eu queria um abraço, mas sabia que abraços nunca combinaram com aquele homem grisalho de Santos.

– Quando eu era um pirralho, ele torceu o pé arando o campo. Eu tive uma crise de choro igualzinha a tua. E, sério, tudo bem. Você não é um garoto mau por isso.

– Jura?

– Juro. Por mais que sua mãe ou seu padre digam que isso é ruim, eles também pensariam como a gente. Talvez pensem. Não somos Jesus e perdoar de coração é algo muito difícil, moleque.

– E você perdoou ele, tio?

– Não – comentou – Não perdoei.

– E porque ajudou ele hoje?

– Porque ele é meu pai – respondeu com simplicidade – E, por mais que ele mereça tudo isso, tem coisas que devem ser feitas independente do que nosso coração diz.

Poucos minutos depois, minha mãe veio me buscar e voltei para a cama. No alto de meus 11 anos, eu não compreendia muito bem nenhum deles e muitos detalhes daquela noite. Eu era jovem demais pra entender a pessoa que meu avô foi. Pra mim, era um velho chato e resmungão que me batia quando ninguém estava olhando. Era um homem meio frio e rígido, intolerante com diversas coisas no mundo. Nunca o percebi como um homem que acorda no meio da noite, tenta ir ao banheiro e cai no chão, porque se esqueceu da perna amputada recentemente devido a uma complicação da doença.

Talvez estejamos com Neil Gaiman à beira de um lago em forma de oceano contemplando nossa infância que explodiu em maturidade.  Talvez não exista um país certo para velhos, que mudam conforme a estrada do tempo e da vida.  Homens rígidos acabam virando fracos. Professores viram bêbados e crianças não conseguem perdoar. Luzes se apagam, as cortinas se fecham e desvendamos o sorriso enigmático de Chaplin em Luzes da Ribalta, que sussurra: Eu ainda sei te alegrar, mas estou velho e vou morrer. Não espere muito mais de mim.

Muito tempo depois, meu tio e meu avô foram enterrados no mesmo lugar, naquela cidade de interior que não se vai, só se fica. Dois túmulos brancos e dois homens que nunca se entenderam em uma terra comum, a velha pátria do que foi importante. E uma flor de magnólia, que carrega meu respeito, meu sentimento e meu destino .

Réquiem

Isso vai ser um pouco diferente.

Tudo é uma questão de perspectiva

Era mais um sábado normal, daqueles abafados que levam uma eternidade pra passar. Meio-dia e tantas da tarde, caminhávamos pelas calçadas da feira. Minha mãe conversava comigo e eu carregava duas sacolas cheias.

Confesso que minha cabeça estava muito longe, ocupada demais em uma grande análise ética de mim mesmo. Coisa bem normal em um tempo cheio de “ses” e “por quês”. Cada passo era um movimento automático, de um pé a frente do outro e um ligeiro “uhum” pra fingir que eu ainda prestava atenção na conversa da minha mãe sobre… Contas ou arrumar um emprego. Algo do tipo.

Até que ela caiu.

Mesmo olhando, levei alguns segundos pra perceber o fato. Ela não gritou em nenhum momento, enquanto encontrava o chão áspero da rua. Deixei as compras e fui ajudá-la a levantar, observado por todos ao redor. “Tombo feio” pensei, enquanto via um arranhão no cotovelo. E minha mãe começou a chorar.

Primeiro, me preocupei que tivesse quebrado alguma coisa. Exame rápido, sem fraturas aparentes ou lugares com dor. Estranhei mais a situação. Conheço essa mulher melhor que qualquer pessoa e não tinha motivo para chorar assim ou para cair do nada. Nenhuma calçada irregular, uma fraqueza momentânea ou qualquer outra coisa do tipo. Não era dor. Era como uma criança que cai da bicicleta e chora pela vida.

E, finalmente, eu entendi o que aconteceu.

Aquela mulher forte, corajosa e destemida, que nunca se dobrara ao desafio de criar um filho sozinha, percebeu sua idade. Pode parecer idiota pra quem nunca viveu algo assim, mas a realidade sabe bater duro quando menos se espera. Com uma queda repentina e sem motivo, aquela mulher de 65 anos contemplou a possibilidade de que iria morrer. Não hoje, não agora, mas um dia.

Abracei-a cuidadosamente, enquanto dizia “vai ficar tudo bem”. Aos poucos, parou de chorar, levantou-se e fomos para casa. Nenhum dos dois tocou no assunto, em um pacto silencioso que não precisou ser jurado. Ela foi para a cozinha, contemplando uma nova vida e eu fui para meu quarto, contemplando uma nova morte. Respirei fundo.

Um

Sua vida muda quando entende que não tem todo tempo do mundo. Por mais que você conheça o fato, senti-lo é completamente diferente. Um misto de medo, ódio, desespero e negação pela fatalidade. Seu chão some por alguns instantes, sua cabeça roda e o que era importante se perde como uma lágrima na chuva.

Dois

A morte nunca marca visitas ou entrega cartões. É um ladrão que chega furtivamente, pega algo importante e vai. Simples, cruel e tangível como a realidade. Era uma perspectiva dura demais para encarar, mas necessária. Até mesmo a morte tem propósito. Acalmei meu coração

Três

Deitei na cama, ouvindo os sons do meu réquiem. Minha oração.

Recomeçar

– Você tem certeza disso? – olhando para seu amigo

– Claro, cara. Por que eu estaria errado?

Carlos suspirou. Ele sempre estava errado, na verdade. Mas a amizade com o Rafa sempre seguiu a regra de não contrariar a merda que o outro fizesse. No máximo, uma advertência antes e um “eu avisei” depois. Nada mais.

– De todas as coisas nesse mundo, você precisava mesmo fazer isso? – disse Carlos.

– Sim.

– Você pode morrer.

– Eu sei. Não que isso faça muita diferença agora, mas eu sei. – deu um meio sorriso amarelo

– …

– Tá com medo, cara?

– Muito – admitiu

– É por isso que chamam isso de “salto de fé”. Você não vem?

Olhou para baixo, calculando a distância entre seu corpo e o chão. Grande demais. Se agarrou um pouco mais forte nos apoios de concreto, com medo da vertigem pregar uma peça e puxar seu pé.

– Nem ferrando.

– Um dia vai acreditar, cara. – Rafa limitou-se a rir da situação – Ô, rapaz de pouca fé.

E pulou. Ele observou o corpo do seu amigo caindo em direção ao chão, cada vez mais rápido e decisivo. Segundos intermináveis de agonia, até que uma corda de segurança o puxou para cima. Carlos sentiu um arrepio subindo pela espinha. Se fosse há dez anos atrás, ele pularia junto sem hesitar. Mas aos 29 anos, o risco tem que dar lugar para a prudência.

Além disso, Bungee Jump nunca esteve em suas prioridades.

***

Acordou.

Olhou para o relógio na cabeceira da cama. “Duas da manhã” Carlos pensou, remexendo-se nas cobertas. Virou para o lado e tentou adormecer mais algumas vezes. Sem sucesso. Tinha alguma coisa presa em sua garganta.

Desistiu do sono e foi até a cozinha beber um copo d’água. Seria uma casa bem confortável para qualquer um, mas Carlos sempre achou muito grande e solitária. Um grande bloco de marfim branco, carregado em suas costas. “Se ao menos ela estivesse aqui…” ocorreu, antes de afastar o pensamento com um gole. Não era bom mexer em caixões enterrados a essa hora da noite. Até o silêncio da madrugada ser quebrado por um toque de celular. Carlos voltou para o quarto e pegou o aparelho da cabeceira.

– Merda… quem será o f…- calou-se. Era Júlia.

De todas as pessoas do mundo, era Júlia. Anos e anos sem muito mais contato que um “oi” em encontros de família, e ela estava ligando no meio da madrugada. O coração de Carlos saltou para a garganta antes de atender.

– Oi Jú.

– Carlos, você falou com o Rafa?

“ Sempre o Rafa”.

– Não, umas semanas que não nos falamos, por quê?

– Ele sumiu. – disse Júlia – Ele sumiu Carlos. A vizinha dele me ligou, dizendo que ele não saia do apartamento há dias. Dai, o sindico abriu a porta e ele nem tava mais lá.

– Tem certeza?

– Sim. – Soluçou.

Carlos engoliu seco. Apesar das ultimas brigas, o Rafa sempre esteve lá. Desde crianças, na escola, na faculdade… Mesmo com 40 anos nas costas e a Júlia no meio, estiveram juntos para tudo. E, agora, ele sumiu.

– Já ligaram pra todo mundo?

– S-sim. Ninguém sabe.

– Vou tentar mesmo assim.

Encerrou a ligação. “Júlia estava chorando por ele” pensou por um segundo. Afastou isso, porque não era importante agora. Ligou para todos. Nada no trabalho, nada com outros conhecidos, apartamento realmente vazio. Nada de Rafa há pelo menos duas semanas. Se estivesse em seriado policial, seria a hora que Carlos procuraria digitais, ligações do celular e rastros do cartões de crédito. Mas um contador não tem essas habilidades ocultas. Até que se lembrou de uma pista.

– A lista!

Pegou a chave do carro e saiu de casa, atrás de uma memória há muito esquecida.

***

Carlos tinha 10 anos. Um menino típico de cidade grande que visitou o sítio do avô e foi afastado de toda e qualquer tecnologia. Até de lâmpadas. Sua cara estava suja, seus pés descalços e contava até 100 para procurar seus amigos no esconde-esconde. De dois em dois, claro.

Terminou e olhou ao seu redor. Não levou tanto tempo assim pra encontrar os seus primos. Um era muito gordo pra se esconder atrás de qualquer coisa e o outro muito burro para notar que metade do seu corpo aparecia atrás da árvore. Faltavam duas pessoas só.

Começou a procurar dentro da casa vazia, onde seu avô normalmente guardava tranqueiras. “Esse seria um bom lugar pra ele se esconder” pensou. O Rafa sempre fora esperto pra esconde-esconde e levá-lo na viagem tornava tudo mais divertido para Carlos. E era um alívio para o Rafa. Ele precisava se divertir, depois de perder o pai daquele jeito. Gastou um tempo em dois cômodos grandes, um quarto com poeira e uma sala meio cheia de caixas. Ai, olhou no armário e encontrou.

Sentiu seu estômago dar uma volta.

O Rafa estava com a Júlia, abraçados no mesmo canto. Poderiam ter gritado de susto, se não tivessem se beijando há um tempo, alheios a tudo. Carlos ficou entre a vontade de dar um chute nos dois e dar meia volta.

Optou pela meia-volta até a casa grande, desistindo de brincar.

Júlia era sua prima também. Uma garota loira, teimosa e brigona. Carlos sempre sentiu um arrepio leve quando ela chegava perto. E agora, era um ódio imenso dela e do Rafa. Mais dele, no caso.

A noite, Rafa procurou o amigo.

– Onde você esteve o dia todo, cara?

– Por ai.

– Sei… por ai.

– É.

Silêncio.

– Eu vi vocês.

– O quê?

– Eu vi vocês! – gritou Carlos – Juntos, no armário!

Segurou o choro, para não demonstrar fraqueza. Rafa olhou fundo para o amigo, antes de enfiar outra espada.

– Eu gosto dela, cara.

– Eu também. Mas ela quer você. Sempre é assim.

– Não é verdade… – murmurou Rafa, embora fosse. – Me desculpa?

Carlos empurrou o coração na garganta pro lugar dele.

– Sim, eu acho. – abraçando-se.

Doeu bastante dizer aquilo. Era uma decisão difícil, mas a amizade pesava mais. Talvez existissem outras Júlias no mundo, com seus cabelos loiros e sua boca rosada. Ou mesmo uma ruiva de olhos verdes mandona.

Agora Rafa só tinha um.

– Eu achei a lista, cara. – disse Rafa

– Que lista?

– A do meu pai.

Era um pedaço de papel amassado com a letra do pai do Rafa, muito rabiscada para ler com clareza. Mas estavam lá. Os últimos desejos do Sr. Sousa, nunca realizados.

– Meu pai me deu isso, antes de… bom, antes.

Carlos tentou pegar a lista, mas o amigo afastou a mão.

– Rafa, você não vai morrer – Olhar sério.

– Meu pai morreu

– Mas você não vai. – Carlos teimou. Afinal, era uma criança. Rafael limitou-se a suspirar, com ar de “não adianta explicar”.

– Eu vou cumprir os itens, cara. – Rafa mostrou a língua – Por ele.

– Só não se apaixone pela Júlia. – Carlos, sério – Promete?

– Prometo. – dedos cruzados.

“ Rafa só tem um”

***

Há muitos verões que Carlos não visitava aquela casa. A propriedade era bem afastada do resto da cidade. Um sítio de interior, que brincava quando criança. Quando cresceu, ficar afastado do mundo nunca lhe pareceu uma boa ideia.

Trocou as noites de conversa pelas festinhas no centro da cidade, no clube esportivo e na casa de amigos. Rafa sempre o acompanhou, mas Carlos sabia o quanto ele sentiu falta daqueles tempos. Passou pela porta velha, corroída por insetos e tempo. Todo o lugar estava mal cuidado desde que o velho morreu, há alguns anos atrás.

Por trás de cada passo no assoalho, nostalgia. Os dias passavam em flash por sua cabeça, como gritos de algo há muito esquecido. Seus pés pesavam à medida que se deslocava para seu destino. Foi até o último cômodo do quarto, onde viu um homem negro sentado, com uma arma na mão.

– Rafael?

– Oi cara. Tava esperando você.

Rafa deu um sorriso lupino, por detrás de uma barba mal feita. Sua aparência envelhecera com a casa. Estava magro, com o cabelo desalinhado e as roupas sujas. Mas ainda com os mesmos olhos negros intensos que Carlos aprendeu a conviver durante todo esse tempo. Ele brincava com o revolver, girando-o lentamente na sua mão.

– O que aconteceu, Rafa?

– O de sempre. – respondeu o amigo – Lembra dessa casa, cara?

– Lembro, Rafa… Agora, abaixa essa arma pra gente conversar.

– Lembra do que o seu avô dizia, quando acabávamos brigando com outros garotos?

-…

– Ele dizia “os fortes devem proteger os fracos”

– O que aconteceu com você, Rafa?

– Os fortes devem proteger os fracos – murmurava para a escuridão

– Ainda tem chance do tratamento dar certo. Não é o fim.

– Os fortes devem proteger os fracos

– Rafa… Larga essa arm..

– Os fortes devem proteger os fracos.

– Eu sei disso! – foi um berro

– Então, por que você não me protege, Carlos?

O homem foi ao chão, abraçou os próprios joelhos e soluçou como uma criança. Carlos observou entorpecido. Uma gota de suor frio escorria lentamente para sua nuca.

– Por que você não me protege?

Passaram alguns minutos em silêncio até que ouviu a arma emitir um estalo. Rafa olhou para seu amigo, erguendo a arma em sua direção.

– O que vai fazer com isso?

– Pra falar a verdade sempre tive inveja de você, cara. Tinha uma família, uma prima linda, era inteligente, tinha sorte. Eu sempre fui um fudido na sua sombra. Chego aos 40 anos com um pé na força e nada pra me agarrar. A única coisa que eu tinha era a lista do meu pai, e nem isso eu vou terminar.

– O que tem nessa lista?

– Não importa agora. Abandonei faz algum tempo isso.

Carlos sentiu seus músculos enrijecerem. Sua cabeça girava com a perspectiva de morrer na casa do seu avô, pelas mãos de seu melhor amigo. Tentou gritar com Rafael, socá-lo, abraçá-lo e dizer o quanto ele era importante. Mas não conseguia dizer nada.

– Engraçado como as coisas se repetem – murmurava – Já ouvimos essa história milhares e milhares de vezes. Dois irmãos, dois amigos, duas personalidades diferentes. Um bom, outro mau. Se amam, se odeiam. Brigam. Até que um deles enlouquece. E mata.

– Não precisa acabar assim, Rafa.

– Precisa. Porque só acaba uma vez.

Fôlego.

– Te vejo em outra vida, cara – disse Rafael

Carlos fechou os olhos.

***

– Era seu parente?

– Amigo.

– Sinto muito pela sua perda – disse o responsável, com o tom de quem repete essa frase umas 20 vezes por dia – Ninguém veio vê-lo, além de você. Ele tinha alguma família?

– Não.

– Tudo bem então, senhor. – disse o velho, deixando o salão.

Era uma tarde chuvosa de terça-feira. Muitas cadeiras vazias ao redor de um caixão de madeira. O tempo caminhava em passos lentos, a medida que o firmamento derramava águas sob o concreto. Só dois homens no local.

Um deles olhou para o outro. Apesar de tudo, o amava. Eles caminharam juntos o tempo todo. Foram amigos de infância, rivais de romance, colegas de faculdade e agora dividiam a morte, embora um ainda respirasse. O homem sentia-se vazio por dentro. Uma sensação estranha, de que faltava algo ou alguém em algum lugar.

E faltava mesmo.

Alguns passos ecoaram no salão branco. O homem não olhou para a direção do som, ainda encarando o falecido. Depois de alguns segundos, sentiu uma presença e um toque familiar.

– Faz muito tempo que você chegou? – sua voz era doce como a primavera.

– É…

Era loira, com cabelos ondulados até o ombro. Usava um vestido negro que mostrava sua falta de curvas naturais. Seus olhos estavam inchados, como os de quem chorava por horas a fio. Uma garota comum para qualquer um que a visse. Importante para os dois.

– Não queria que fosse assim…

Júlia beijou o falecido, deixando outra lágrima escapar. Despediu-se do amigo em soluços breves, antes de conversar com o homem.

– O que aconteceu naquela casa, primo?

– Ele se matou… Ele apontou a arma pra mim e eu fechei os olhos. Ouvi um tiro e, quando vi, ele estourou a própria cabeça.

Carlos soluçou.

– Eu congelei. Fiquei com medo dele me matar. Não consegui fazer nada. Nada!

Júlia abraçou seu primo. Ele se agarrou em seus braços, o perfume dela acalmando-o. Desde crianças, Júlia era o ponto de equilíbrio exato da sua vida. Mesmo quando se afastaram, ela foi sua voz da consciência, sua melhor amiga e seu maior caso de amor não correspondido.

– Eu passei no apartamento dele, pra pegar as coisas e achei isso – Júlia entregou um pedaço de papel amassado.

Apesar de não vê-lo há muitos anos, Carlos reconheceu de imediato. A letra do Sr. Sousa era inconfundível. Tinha cinco palavras escritas, embora somente quatro fossem legíveis. Ele pegou a lista que motivara a vida e morte de seu amigo.

– Você sabe o que isso significa, Carlos?

“Sim”, mas disse:

– Não.

– Achei que você saberia – Júlia suspirou.

-…

– Quanto tempo ele ainda tinha, primo?

– Os médicos deram um ano. Talvez, menos.

– Igual o pai – refletiu Júlia – Estranho como essas coisas acont..

Carlos não prestou atenção no discurso da prima. As palavras da lista percorriam sua mente. Eram sutis, imprecisas e nada parecidas com um “último desejo”. Ele leu “amar” “arriscar” “fugir” e “dar adeus”. Ele não se lembrava do rosto do Sr. Sousa. Quando pensou, notou que não lembrava do rosto de seu avô também.

– Não foi sua culpa, Carlos – disse Júlia.

– …

– Eu entendo ele melhor que muitas pessoas. Ele tinha muitos problemas, sabe?

– Não…

– Ele teve muitas coisas na vida dele que levaram a isso. Talvez tenha sido melhor e….

– Não fale mal dele!

– Eu amo muito o Rafa, Carlos! – gritou Júlia – Eu amo ele desde sempre! Mas não dava, cara. Tentamos um tempo e não dava mais. Ele ia morrer de qualquer jeito! Ele apontou uma arma pra você, pelo amor de Deus!

A chuva começava a dar lugar para um sol poente. A grama baixa agradecia o banho, balançando-se levemente contar o vento em uma dança contida. Carlos sentiu algo saindo do seu peito, depois de muitos anos corroendo.

– Eu te amo, Júlia.

– Eu também amo você, Carlos. Mas é de outro jeito. – ela tocou o rosto dele suavemente – Não quero vir no seu funeral também, primo.

E o que eu faço?

– Viva. Por ele e por si mesmo.

Carlos respirou fundo. As palavras da lista ainda ecoavam na sua cabeça, até que alguma coisa mais forte interrompeu essa corrente. Uma frase antiga, que escapou de alguma profundeza esquecida para sua mente.

“Rafa só tem um”

Júlia deu um último abraço no seu primo, com um breve “fique bem”. Carlos acompanhou sua trajetória para fora da sala pela grama úmida, até um carro azul estacionado por perto. Um homem alto, de barba cheia a esperava encostado na porta. Ela beijou o homem, antes de entrar e partir outra vez.

Ele olhou de novo para Rafael. Sua expressão era serena como não via há anos. Muito mais o garotinho que brincava de esconde-esconde do que o homem que o ameaçava com armas. No fim, sentiu saudades daquele tempo que nunca parou para deixar viver mais um pouco o momento.

Até que entendeu.

Pegou a lista do bolso e releu a última palavra. A letra do Sr. Souza era realmente horrível, e somente alguém que já estivesse com essa palavra na cabeça conseguiria compreender. Carlos entendeu tudo e sorriu par o amigo. Curvou-se e murmurou:

– Te vejo em outra vida, cara.

E saiu para um novo dia de sol.

***

Ele olhava o abismo a sua frente. Uma queda e tanto. Como antes, sentiu a vertigem puxando seu estomago pra baixo.

-Meio alto não? Tem certeza disso?

Carlos se virou e viu uma mulher. Morena, de cabelos negros e um sorriso lindo. Era bem mais baixa que ele, trajando a mesma roupa de segurança obrigatória para quem pula de bungee jump.

– É por isso que chamam de “salto de fé” – respondeu – Qual seu nome?

– Tamiris.

Cumprimentaram-se brevemente.

– Tá com medo? – perguntou Tamiris

– Não mais.

– Me procura quando chegar lá embaixo, pra tomarmos alguma coisa fora daqui – sorriu Tamiris – Te vejo em outra vida.

A garota pulou sem hesitar. Carlos observou o trajeto do seu corpo, enquanto lembrava da mesma cena há alguns anos atrás. Lembrou da última palavra da lista e sorriu para o Rafa em algum ponto além. Respirou fundo.

“ A palavra é recomeçar” pensou Carlos, pulando para uma nova vida.

Outono Passageiro

Créditos: Bruna Ciprovac

 

Começara pequeno, tal qual uma folha dourada que cai da árvore e vai de encontro ao chão ou aos cabelos de Clarice Lispector. Uma palavra simples, pequena e que mudou tudo. O prelúdio que marca o fim de uma jornada já conhecida.

O homem caminhava resignado pela cidade, perdido em mil pensamentos incertos. Um observador atento veria um rosto jovem, que fora envelhecido com as chagas de quem já passou por muita coisa em pouco tempo. Uma barba malfeita para combinar com um céu cinzento e chuvoso, além dos passos lentos que continuavam seu rumo errante para lugar algum.

Notou um parque no seu caminho e algo dentro de si mandou que parasse. Passou o arco de ferro da entrada e sentou-se no banco de madeira mais próximo. O lugar fora construído recentemente as ordens do prefeito (um “serviço público aos cidadãos” uns meses antes das eleições) e, por isso, estava a salvo dos habituais marginais que rondam a capital. Mesmo assim, não apresentava muita vida, graças ao vento frio que soprava incessantemente. O homem tentou ficar confortável, mas viu que não era possível. Aprumou-se e dedicou sua atenção para esquecer tudo àquilo que aconteceu.

– Esse lugar tá vazio? – perguntara a garota.

Assustou-se um pouco, porque não viu ninguém chegando. Era uma garota de uns 15 anos, com longos cabelos negros presos em uma toca vermelha, com um cachecol em sincronia com o conjunto. Com um aceno, indicou que sim e ela sentou ao seu lado. Ele não conseguia mais focar em nada, pois o canto dos seus olhos insistiam em espiar a recém-chegada. Sorria muito satisfeita consigo mesma, como se tivesse um segredo não compartilhado, um namorado novo ou só um chocolate escondido. Os olhos dela se voltaram para o homem e sua boca quebrou o silêncio.

– Tudo bem?

– Tudo – cortou o homem.

– Não parece. – continuou a garota – Sabe, é preciso ser um grande mentiroso pra esconder como estamos e você não é muito bom nisso.

O homem limitou a encarar a garota de volta, se perguntando onde foi parar a boa educação desses adolescentes malucos e a ignorou, tentando tira-la dali.

Não conseguiu.

– Ok… Acho que não estamos a fim de conversa, não é? Uma pena. Conheço muita gente que daria tudo pra conversar comigo.

– Por que não procura algum deles então? – murmurou o homem. Ela não ligou para a grosseria.

– Porque gosto de sua esposa, Rick. Isso é muito mais por ela do que por você.

Ele ergueu os olhos.

– Você conhece a Elisa?

-Conversamos com muita frequência, apesar dessa situação toda. Nem sempre é nossa escolha, sabe?

– E o que você sabe sobre isso?! – gritou Rick, abalado por tocar naquele assunto com uma estranha – O que uma garota de merda sabe da vida?!

– Sei o quanto você se sente desesperado, triste e magoado. Sei que está com ódio de Deus, de Elisa e do mundo todo. Sei que sua vida nunca foi fácil, ao ponto de desistir de tudo e pular daquela ponte, quando tinha 15 anos. Eu sei de muita coisa, Rick.

O homem olhou espantado. Somente seu antigo amigo conhecia sua tentativa de suicídio, há muitos anos atrás.

– Quem é você?

– Meu nome é Celine, mas não sou importante agora – respondeu com simplicidade, olhando ao redor – Eu gosto bastante do outono sabe? Mistura a nostalgia de um bom verão com o medo de um gélido inverno. Pode parecer absurdo, mas o outono é a estação mais viva de todas.

Rick ponderou as palavras da jovem e sentiu uma lágrima escapar de seu olho, para sua face, para o chão. Outras lágrimas vieram a seguir e seu corpo acompanhou o movimento.

– Isso n-não é justo! –soluçou. – Não é justo! Depois de tudo que passei, morrer assim não é justo!

– Não, não é – concordou a jovem – Mas nem sempre as coisas saem do jeito que planejamos.

– Isso deve ser uma piada amarga. – Rick chorava – Uma piada sem graça de um Deus rancoroso. DESGRAÇADO! – gritou

A jovem observava Rick e, pela primeira vez, perdeu seu sorriso. Ajoelhou-se e abraçou o homem.

– Tudo bem. Vai ficar tudo bem. Quanto tempo você tem, Rick?

– Três meses. Um pouco mais, caso eu faça o tratamento.

Com o contato, Rick sentiu uma paz invadindo seu corpo e, aos poucos, secando suas lágrimas. Levou alguns minutos para que ele se acalmasse por completo.

– Não tenha medo. Apesar de tudo, você encontrou Elisa e, depois Beatriz. Elas estão preocupadas contigo, sabe?

– S..sei. Mas eu não aguento mais.

– Seja forte por elas, então. O outono é só uma passagem tardia pra primavera e as folhas só caem para que novas nasçam. Nunca é em vão, Rick. Nunca é.

Rick sentiu-se finalmente em paz. Olhou para a jovem que, contudo, não estava mais lá. Somente ele, ajoelhado no chão do parque. Caminhava para fora do local, quando uma folha bateu em seu rosto, antes que cruzasse o arco de ferro. Sorriu involuntariamente e guardou a folha consigo, como um presente valioso. Retomou sua caminhada.

Era hora de voltar pra casa.

Espetáculo

As cortinas se abrem, revelando um picadeiro de mármore frio. Nele, uma mesa com um copo d’água e nosso menestrel repousando sob uma cadeira. Sua maquiagem de palhaço não esconde seus olhos profundos como um oceano e seu sorriso irônico. Todos o viram ao menos uma vez na vida e o verão, ao menos uma vez antes da morte. Ele levanta, olha para seu público e começa seu show.

Primeiro Ato.

***

Não vou me apresentar, porque não importa muito nesse ponto. Na verdade, poucas coisas realmente são importantes nesse péssimo hábito exercido chamado “viver”. E menos ainda as que damos o devido valor e proporção, principalmente quando se tem 15 anos. Todos passaram por essa fase, na qual toda paixão é um mar de felicidades ou desespero e as opiniões de seus colegas de classe são mais importantes que suas notas, seus pais ou mesmo o que você realmente é. Engraçado como poucas pessoas se lembram de como crescer é tão solitário. Não é?

É, eu sei. Também me sinto assim.

Continuando, eu tinha 15 anos. Nunca fui popular, nunca beijei todas as garotas que quis ou consegui tocar Quebra-Mar do “Acústico MTV – Charlie Brown Jr” no violão. Era um dos tantos caras meio solitários, meio apaixonados e meio desesperados que existem em uma cidade. Estava sentado na frente de um computador, em uma segunda-feira entediante que prometia o típico final de merda como tantas outras, até que ela me ligou.

***

Chegamos à metade de nosso breve contato. O palhaço se permite uma pausa para um gole rápido e grande demais de água, que o faz engasgar e cuspir. Ninguém ri, além dele próprio. Uma piada velha e sem graça. Ele está satisfeito.

Inicia o segundo ato.

***

Hesitei um pouco pra atender (engraçado como você meio que presente as coisas), ouvi mais dois toques e tirei o telefone da base.Senti que todo chão desabava. Estava anestesiado na cadeira e tudo girava ao meu redor. Cada palavra, uma facada no coração, na carne, na alma. Estava apaixonado por uma garota que, mesmo depois de algumas tentativas, não tinha dado certo. Ela tentou se afastar, eu discordei e aceitei a posição do “amigo”. “Grande erro”, vocês dizem.

Concordo. Um erro que eu paguei com juros a cada palavra dela sobre o novo namorado, a nova transa e como tudo foi incrível. Ela desligou. Eu cai, cada vez mais até chegar a mim mesmo e no chão frio. Não sei o tempo que passou até que me levantei, sem propósito, sem rumo e sai pela porta.

Não vou dizer se foi certo ou errado. Talvez fosse diferente se eu fosse mais maduro, se não fossem todas as merdas que aconteciam desde sempre, se eu tivesse mais atitude. Mas não tinha. Não era só sofrimento. Era uma corrente de ferro frio, contínua, quando seus dias parecem iguais uns aos outros e você perde a certeza do que foi hoje ou aconteceu ontem. Era a sensação que tudo estava errado. Era a solidão de perder sua própria alma.

A rua estava escura e o vento não era nada convidativo. Prossegui em passos incertos, sem acreditar realmente onde meus pés me levavam. O mundo ao meu redor era vazio. Não sei descrever as pessoas que esbarrei, as ruas que cruzei ou as luzes daquele bairro de subúrbio naquela hora. Minha percepção voltou quando olhei para a passarela acima da rodovia e entendi como terminava tudo aquilo. Uma comédia sem graça, sem palco, sem nada. Estava pronto para encerrar o espetáculo, colocar as cadeiras em cima da mesa e apagar a luz quando sair.

***

Pausa. Toda a atenção da plateia está voltada para o palhaço. Ele sente a palpitação latente em muitos corações desesperados. Sente a indiferença de alguns, que esperavam uma comédia. E pensa consigo próprio como, depois de tanto tempo, aquilo ainda funcionava. Deixa no ar uma respiração rápida, do que ainda está por vir.

Terceiro Ato

***

Loucura? Talvez.

Minhas mãos seguravam com muita força o concreto áspero daquele lugar. Olhei duas vezes ao redor, sem saber ao certo se queria ser resgatado ou não ser atrapalhado. Era tudo incerto. Olhei para o grande vazio de asfalto abaixo. Nietzsche disse sobre os perigos de olhar muito tempo para um abismo: ele pode acabar te olhando de volta. Sem perceber, abri as mãos.

Uma de minhas crenças até o momento é que alma humana sempre busca a vida. Então achava que seria um trabalho árduo abrir a mão e cair no vazio infinito que existe ente um ponto e outro, antes do impacto. Mas não. Foi muito fácil. Senti a vertigem da gravidade me chamando para uma conversa e pensei no motivo disso tudo, em meio a tanta amargura. É verdade o que dizem: o tempo realmente passa mais devagar. Tive um breve momento para pensar nas reações de quem conhecia, do que eu sentiria a falta, No que realmente importava.

Era uma morte burra, fácil, idiota e estúpida. Por nada. Por ninguém. Até aquele ponto, a vida foi um longo e prolongado grito de um suicídio. Mesmo em 15 anos, não tinha nada de significativo e era minha culpa. Poderia viver e escolhi existir. O jeito mais fácil. Não me importei muito com o depois, se existiria céu ou inferno que me acolhessem. Mas palpitou medo, culpa, arrependimento e raiva. Foi covarde.

No fim, não valia a pena.

Um rápido puxão me fez perder o fôlego. Segurei-me desesperadamente nos apoios que tão fácil desisti e senti uma mão agarrando com toda força minha camisa. Com mais um movimento, consegui sair daquele ponto, cai no meio da passarela e vi meu salvador. Um rosto familiar, um vizinho, um amigo de infância. Uma nova chance. Ouvi um rápido “que merda foi essa?” antes de abraçá-lo e agradecer a Deus, Buda, Alá e a qualquer outro filho da mãe celestial que estivesse ouvindo. Chorei e gritei.

Finalmente, estava vivo.

***

O palhaço faz um gesto que encerra a história. A plateia lentamente se dissipa, sem aplausos. Ele não os espera, de qualquer forma. Poucos sabem reconhecer sua genialidade e muitos questionam seus métodos. No entanto, funcionam. Queime-os, até que renasçam das cinzas. Ele coloca a cadeira em cima da mesa e bate duas palmas, para apagar as luzes.

Fim do espetáculo.