Espetáculo

As cortinas se abrem, revelando um picadeiro de mármore frio. Nele, uma mesa com um copo d’água e nosso menestrel repousando sob uma cadeira. Sua maquiagem de palhaço não esconde seus olhos profundos como um oceano e seu sorriso irônico. Todos o viram ao menos uma vez na vida e o verão, ao menos uma vez antes da morte. Ele levanta, olha para seu público e começa seu show.

Primeiro Ato.

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Não vou me apresentar, porque não importa muito nesse ponto. Na verdade, poucas coisas realmente são importantes nesse péssimo hábito exercido chamado “viver”. E menos ainda as que damos o devido valor e proporção, principalmente quando se tem 15 anos. Todos passaram por essa fase, na qual toda paixão é um mar de felicidades ou desespero e as opiniões de seus colegas de classe são mais importantes que suas notas, seus pais ou mesmo o que você realmente é. Engraçado como poucas pessoas se lembram de como crescer é tão solitário. Não é?

É, eu sei. Também me sinto assim.

Continuando, eu tinha 15 anos. Nunca fui popular, nunca beijei todas as garotas que quis ou consegui tocar Quebra-Mar do “Acústico MTV – Charlie Brown Jr” no violão. Era um dos tantos caras meio solitários, meio apaixonados e meio desesperados que existem em uma cidade. Estava sentado na frente de um computador, em uma segunda-feira entediante que prometia o típico final de merda como tantas outras, até que ela me ligou.

***

Chegamos à metade de nosso breve contato. O palhaço se permite uma pausa para um gole rápido e grande demais de água, que o faz engasgar e cuspir. Ninguém ri, além dele próprio. Uma piada velha e sem graça. Ele está satisfeito.

Inicia o segundo ato.

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Hesitei um pouco pra atender (engraçado como você meio que presente as coisas), ouvi mais dois toques e tirei o telefone da base.Senti que todo chão desabava. Estava anestesiado na cadeira e tudo girava ao meu redor. Cada palavra, uma facada no coração, na carne, na alma. Estava apaixonado por uma garota que, mesmo depois de algumas tentativas, não tinha dado certo. Ela tentou se afastar, eu discordei e aceitei a posição do “amigo”. “Grande erro”, vocês dizem.

Concordo. Um erro que eu paguei com juros a cada palavra dela sobre o novo namorado, a nova transa e como tudo foi incrível. Ela desligou. Eu cai, cada vez mais até chegar a mim mesmo e no chão frio. Não sei o tempo que passou até que me levantei, sem propósito, sem rumo e sai pela porta.

Não vou dizer se foi certo ou errado. Talvez fosse diferente se eu fosse mais maduro, se não fossem todas as merdas que aconteciam desde sempre, se eu tivesse mais atitude. Mas não tinha. Não era só sofrimento. Era uma corrente de ferro frio, contínua, quando seus dias parecem iguais uns aos outros e você perde a certeza do que foi hoje ou aconteceu ontem. Era a sensação que tudo estava errado. Era a solidão de perder sua própria alma.

A rua estava escura e o vento não era nada convidativo. Prossegui em passos incertos, sem acreditar realmente onde meus pés me levavam. O mundo ao meu redor era vazio. Não sei descrever as pessoas que esbarrei, as ruas que cruzei ou as luzes daquele bairro de subúrbio naquela hora. Minha percepção voltou quando olhei para a passarela acima da rodovia e entendi como terminava tudo aquilo. Uma comédia sem graça, sem palco, sem nada. Estava pronto para encerrar o espetáculo, colocar as cadeiras em cima da mesa e apagar a luz quando sair.

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Pausa. Toda a atenção da plateia está voltada para o palhaço. Ele sente a palpitação latente em muitos corações desesperados. Sente a indiferença de alguns, que esperavam uma comédia. E pensa consigo próprio como, depois de tanto tempo, aquilo ainda funcionava. Deixa no ar uma respiração rápida, do que ainda está por vir.

Terceiro Ato

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Loucura? Talvez.

Minhas mãos seguravam com muita força o concreto áspero daquele lugar. Olhei duas vezes ao redor, sem saber ao certo se queria ser resgatado ou não ser atrapalhado. Era tudo incerto. Olhei para o grande vazio de asfalto abaixo. Nietzsche disse sobre os perigos de olhar muito tempo para um abismo: ele pode acabar te olhando de volta. Sem perceber, abri as mãos.

Uma de minhas crenças até o momento é que alma humana sempre busca a vida. Então achava que seria um trabalho árduo abrir a mão e cair no vazio infinito que existe ente um ponto e outro, antes do impacto. Mas não. Foi muito fácil. Senti a vertigem da gravidade me chamando para uma conversa e pensei no motivo disso tudo, em meio a tanta amargura. É verdade o que dizem: o tempo realmente passa mais devagar. Tive um breve momento para pensar nas reações de quem conhecia, do que eu sentiria a falta, No que realmente importava.

Era uma morte burra, fácil, idiota e estúpida. Por nada. Por ninguém. Até aquele ponto, a vida foi um longo e prolongado grito de um suicídio. Mesmo em 15 anos, não tinha nada de significativo e era minha culpa. Poderia viver e escolhi existir. O jeito mais fácil. Não me importei muito com o depois, se existiria céu ou inferno que me acolhessem. Mas palpitou medo, culpa, arrependimento e raiva. Foi covarde.

No fim, não valia a pena.

Um rápido puxão me fez perder o fôlego. Segurei-me desesperadamente nos apoios que tão fácil desisti e senti uma mão agarrando com toda força minha camisa. Com mais um movimento, consegui sair daquele ponto, cai no meio da passarela e vi meu salvador. Um rosto familiar, um vizinho, um amigo de infância. Uma nova chance. Ouvi um rápido “que merda foi essa?” antes de abraçá-lo e agradecer a Deus, Buda, Alá e a qualquer outro filho da mãe celestial que estivesse ouvindo. Chorei e gritei.

Finalmente, estava vivo.

***

O palhaço faz um gesto que encerra a história. A plateia lentamente se dissipa, sem aplausos. Ele não os espera, de qualquer forma. Poucos sabem reconhecer sua genialidade e muitos questionam seus métodos. No entanto, funcionam. Queime-os, até que renasçam das cinzas. Ele coloca a cadeira em cima da mesa e bate duas palmas, para apagar as luzes.

Fim do espetáculo.